Entrevista de Maria do Céu da Conceição ao Correio do Vouga
09-06-2010 14:33"Ajudamos as crianças a quebrar o ciclo da pobreza"
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Maria do Céu da Conceição criou há cinco anos um projecto para ajudar crianças de Daca, capital do Bangladesh (ver www.the-catalyst.org). Hospedeira de uma companhia aérea dos Emirados Árabes Unidos, ficou sensibilizada pela pobreza das crianças de uma das cidades para onde a sua companhia voa e resolveu fazer algo para quebrar o ciclo da pobreza.
Porque passou parte da sua infância em Avanca, visitou no dia 16 de Maio esta comunidade, que a recebeu em festa. No dia 20 de Maio, para fugir à burocracia de Lisboa, foi criada em Aveiro uma associação que será o suporte oficial para as actividades do seu projecto, que já tem dimensão internacional. Ontem, em Lisboa, Maria do Céu da Conceição foi uma das oradoras do Encontro COTEC “Empreendedorismo Inovador na Diáspora Portuguesa”. Na próxima sexta-feira, 11 de Junho, Maria da Conceição estará na Esc. Sec. Mário Sacramento, em Aveiro. A sessão, aberta à comunidade, é às 15h. Entrevista conduzida por Jorge Pires Ferreira
CORREIO DO VOUGA - Estava à espera da recepção que teve em Avanca?
MARIA DA CONCEIÇÃO - Foi uma grande surpresa, na terra em que vivi desde os dois anos, de 1979 a 1987. Fiquei muito sensibilizada com a comunidade de Avanca. Muito grata. Foram muito generosos. Ofereceram o dinheiro do ofertório da Missa desse dia para o projecto. O P.e José Henriques quer envolver todas as crianças da catequese para que cada uma ponha num mega mealheiro um euro por mês para ajudar as nossas crianças.
Nesta sua passagem por Aveiro, falou com universitários. Espera algo da Universidade?
Falámos do nosso trabalho, de como começamos e dos projectos para o futuro. Estamos a tentar associar as universidades. Não temos professores do secundário em Daca. Por isso, vamos às universidades e pedimos para nos enviarem professores, médicos, enfermeiros… Também gostaríamos de criar programas de formação específicos para oferecer bolsas a pessoas de lá que venha cá formar-se. Para isso, criamos [no dia 20 de Maio] a Maria Conceição Project Association, entidade jurídica que vai ser a base formal para os projectos.
Ficou surpreendida com o eco dos projectos?
Quando começámos, há cinco anos, não imaginávamos que iriam falar de nós. Agora pensamos que se quisermos voar mais alto, temos de ter um nome global.
Tudo o que fizemos fizemos porque havia necessidade de ajudar. Como cidadã do mundo ou portuguesa, era difícil virar as costas e não ajudar aquelas crianças. Não o fizemos para ter reconhecimento, nem para ganhar prémios ou outras surpresas. Ficamos muito contentes com esta visibilidade, porque significa que vamos poder aumentar a nossa ajuda. E quem vai beneficiar disto? As crianças mas também os pais delas e as sucessivas gerações.
Tudo começou porque, um dia, no seu trabalho de hospedeira visitou um bairro pobre. Já alguém sugeriu que ficou sensível para a pobreza por ter tido uma infância que também passou por dificuldades… É assim?
A atitude de arregaçar as mangas e fazer algo, mesmo sem ter nada, sim, vem da minha educação. A senhora que me adoptou era de cor. Veio de Angola, fugindo da guerra. Foi viver para Avanca, pobre, com os filhos, praticamente só com a roupa que vestia. A comunidade teve que a ajudar. Dois anos depois conheceu a minha mãe. O meu pai tinha morrido e a minha mãe verdadeira estava a ter dificuldades em encontrar trabalho e me sustentar. A minha “mãe” Cristina, com seis filhos, a fazer uma hora aqui e outra ali como empregada doméstica, adoptou-me. Ela dizia: “Quem dá comida a seis dá comida a sete”. “O que os meus filhos comerem, a Maria também come”. Claro que aquilo fica marcado na personalidade.
Há muita gente que vê os problemas do mundo e pensa: “A gente não consegue fazer nada. Somos impotentes”. As pessoas pensam: “Não tenho possibilidades, não tenho estatuto, não tenho educação, não tenho dinheiro, não é o meu dever, o governo é que devia fazer”. É sempre o governo. Nunca é a nossa responsabilidade de cidadãos.
O que penso que apanhei em Avanca e que formou o meu carácter foi a generosidade: do nada pode-se fazer muito; fazendo tão pouco podemos enriquecer a vida de outra pessoa, como enriqueceram a minha, pelo que agora posso retribuir e enriquecer a vida dos outros.
Teve o reconhecimento do Presidente da República, que a recebeu no dia 17 de Maio…
É uma grande honra saber que o Presidente da República quis conhecer o nosso trabalho humanitário. Dá mais credibilidade e asas para voar mais alto.
Mas no Bangladesh não reconhecem o seu trabalho. Tem tido muitas dificuldades…
No Bangladesh é uma luta diária para fazer algo. O meu trabalho é reconhecido em Portugal e nos Emiratos Árabes Unidos, mas no Bangladesh, não. Resistências, resistências e resistências, na alfândega, nos bancos... Temos uma conta para onde nos enviam dinheiro, mas depois não conseguimos provar que o dinheiro está lá. A seguir o banco devolve-o à origem, mas entretanto fica com os custos do processo. Outra dificuldade tem a ver com os vistos.
Mas esses obstáculos têm a ver com o país ou com a sua pessoa em concreto?
As duas coisas. Por um lado, sou uma mulher a liderar homens, o que é mal visto. Por outro, o país não quer expor as suas dificuldades. Há pessoas que enriquecem à custa do trabalho infantil. Naturalmente não estão interessadas na educação infantil. Há também a dificuldade da mentalidade. Costumo comparar a situação ao elefante do circo. Quando é pequeno prendem-no a uma estaca e ele não consegue libertar-se. O elefante cresce, fica grande e forte e poderia libertar-se facilmente, mas não o faz, porque está condicionado. Os adultos também estão condicionados por certas ideias, como a do casamento das raparigas quando chegam à adolescência. Temos de começar a mudar os bloqueios pela infância.
Quantas crianças estão agora no projecto?
Temos 550 crianças na escola. O problema agora é que não tenho recursos para dar o salto. Não temos professores para prosseguir. Graças à nossa ajuda quatro adultos aprenderam e arranjaram empregos qualificados. Nós achamos que é muito pouco, mas algumas pessoas dizem que já é um sucesso. Eu penso que ainda são poucas flores num imenso charco.
Essas resistências têm levado a pensar que poderia fazer um projecto semelhante no Brasil…
Sim, no Brasil, vai haver as Olimpíadas e o Campeonato do Mundo de Futebol e o governo está a tentar diminuir a pobreza das favelas. Pensamos que lá poderíamos fazer muito mais, até porque não há barreira da língua, da cultura, da religião.
Como concilia o trabalho de hospedeira, de horário incerto, com o voluntariado?
Com sessões de 20, 30 ou 40 horas sem dormir. Quando vêem que a Maria está de mau humor, já sabem do que é. Se estou 24 horas em Nova Iorque, podem pensar “Que maravilha, anda a passear”, mas não, passo muito tempo na Internet a tratar de assuntos do projecto.
Quanto está a trabalhar, os passageiros reconhecem-na?
Por vezes isso acontece, até porque saíram artigos sobre mim nas revistas da companhia. E sou ainda mais reconhecida pelos funcionários da companhia. No fundo, sou uma empregada de mesa a 39 mil pés de altitude. Tive de ultrapassar a minha timidez e contactar pilotos para arranjar bens para as minhas crianças: “Tem família no Dubai [cidade base da companhia]? Pode dar-me a roupa dos seus filhos? Pode dar-me livros, brinquedos?” Eu falava com os comissários e pedia que me trouxessem coisas que não utilizavam dos hotéis. Quando me perguntavam: “O que fazes?” Eu falava do meu trabalho em Daca e a palavra foi passando. E comecei a ter muitas voluntárias que passaram a recolher bens. Era uma maneira de arranjarem conversa com os pilotos [risos]... A sorte grande saiu-me quando um piloto de ascendência portuguesa visitou o projecto e reconheceu nas crianças as roupas que a sua mulher tinha dado. Ficou emocionado e mandou e-mails a todos os pilotos a dizer: “Têm que ajudar a Maria porque ela está a fazer algo”. Foi aí que o projecto explodiu. O meu quarto ficou transformado num armazém de material. Começaram a chegar voluntários. Uma jornalista do Dubai falou do projecto e isto tornou-se imparável.
Tem tido ajuda de organizações internacionais?
Temos batido a muitas portas, mas a ajuda tem sido recusada. Um exemplo, o Programa Alimentar das Nações Unidas não nos dá alimentos por estarmos numa zona urbana. Enviámos cartas e mais cartas. As respostas negativas são como pedras que já dão para construir um castelo. As nossas ajudas vêm sempre de pessoas ou empresas particulares.
Quanto custa ajudar uma criança?
Patrocinar uma criança custa 200 euros por ano. Dá para o estudo, alimentação e renda da casa. Um euro compra cinco quilos de arroz ou 50 bananas, que é o alimento para o pequeno-almoço.
Só temos uma oportunidade para educar uma criança. Não podemos deixar que passe. O nosso trabalho é dar às crianças a oportunidade de crescer, evoluir e quebrar o ciclo da pobreza.
Fonte: Correio do Vouga
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